quinta-feira, 30 de outubro de 2008

ENVELHECER COM DIGNIDADE


Morar em Lisboa tem sido uma experiência marcante em minha vida, um aprendizado constante e enriquecedor. Quando se pensa em Europa, geralmente pensa-se em glamour, mas esse é o canto da sereia, e é ilusório. Morar aqui é muito bom, sim, tenho conhecido lugares incríveis e pessoas interessantíssimas, mas é também complicado e estressante em muitos pontos.

Entre todas as dificuldades que precisei enfrentar, quando aqui cheguei, o item moradia talvez tenha sido o mais penoso e desgastante. Mas procurar um apartamento teve seu encanto também, pois peguei o mapa e fui de rua em rua, de bairro em bairro... hoje conheço Lisboa tão bem quanto Belo Horizonte, minha cidade de uma vida inteira...

Finalmente consegui encontrar um apartamento claro, amplo, bem situado, bem servido em termos de transportes públicos e comércio, por um preço justo. Tudo isso era preciso observar, pois aqui eu ando só com os meus dois pezinhos...

E percebo que ganhei em vitalidade e disposição. Subo e desço os quatro lances de escada com a maior facilidade (é, nada de mordomias de elevador também, pois é um prédio antiguinho...), subo ladeiras, carrego as compras...

Tenho aprendido muito observando as pessoas. Portugal é um país com elevado índice de idosos, algo em torno de 16% da população, e tende a aumentar, segundo estudos recentes. Embora seja também um país com um nível de pobreza preocupante e que atinge especialmente os idosos, vejo-os por toda parte muito ativos e participantes: nas lojas, pelas ruas, nos transportes públicos, nos correios, nas tradicionais pastelarias portuguesas, a meio da tarde...

Mas o que me encanta mesmo é acompanhar o trabalho da minha vizinha de fundos. Quando aqui cheguei, era outubro de 2007, e as chuvas tinham feito crescer o mato no terreno dos fundos do meu apartamento. Habituei-me a ver aquela vegetação, até que um belo dia, tive a grata surpresa e mais uma lição de vida: uma senhora de aproximadamente setenta anos, robusta e de cabelos brancos, estava capinando o terreno. Mal pude acreditar no que os meus olhos estavam vendo... Passei a observá-la discreta e respeitosamente a partir da janela da minha cozinha. Dia a dia, passo a passo, ela fazia um pequeno trecho. Mantinha uma cadeira à mão, um chapéu na cabeça, e por vezes se sentava e contemplava o que tinha feito. E um belo dia, o terreno estava limpo. Depois, semeou uma bela horta e a mantém viçosa. Isso mesmo, no coração de Lisboa existe um quintal de aproximadamente mil metros, onde uma senhora de setenta anos cuida sozinha do terreno!

A fibra e disposição dessa vizinha de cabelos brancos me faz lembrar de uma outra, bem mais idosa. É uma senhora doce e muito simples, que se mantém lúcida e ativa, mesmo que hoje seus passos sejam lentos e trôpegos pela fragilidade provocada por uma artrose nos joelhos. Que suporta e não se queixa das muitas dores que essa artrose lhe causa, e só em raros momentos se deita porque a dor naquele dia superou seus limites... Não gosta de entregar os pontos, e nem pede ajuda para o que consegue fazer sozinha. E consegue praticamente tudo, desde o banho, o vestir-se, além de saber muito bem o que se passa no mundo, pois lê os jornais e acompanha os noticiários. E torce pelo seu time de futebol! Muito ativa uma vida inteira, hoje tece crochê em panos de copa, e é uma vendedora de mão cheia...

Esta senhora chama-se Alice, tem 97 anos e nove meses e é minha mãe.

E mantenho bem viva na lembrança uma cena recente. O dia amanhecera e ela foi tomar seu café da manhã. Sempre procuro dar-lhe o conforto de esquentar seu leite, mas nesse dia me distraí fazendo alguma coisa e quando vi, ela vinha da cozinha trazendo na mãozinha trêmula, pois já não tem firmeza, a xícara com o leite quente. Perguntei: foi a senhora que esquentou o leite no microondas? E ela, toda orgulhosa: foi sim, aprendi!

A lição que quero partilhar hoje é esta: para envelhecer com dignidade, é preciso abertura para a vida. Uma certa garra e disposição para o novo, e até mesmo uma certa ousadia, mesmo que nós, os pretensos mais novos, queiramos protegê-los de sua velhice...






5 comentários:

Unknown disse...

Oi Mãe, vc tem sido muito feliz na escolha dos seus temas e com isso vem me proporcionando bons momentos de leitura e reflexão. Bateu uma saudade da vovó que vou dar uma ligadinha pra ela. Beijão e parabéns!
Flávio

Anônimo disse...

Mãe,
Que lição de vida!Hoje em dia, a sociedade perdeu o respeito e o carinho pelas pessoas e ainda mais o amor e a consideração pelos idosos que todos nós temos que aprendermos mais vezes com esses jovens aprendizes.Graças a Deus que vovó esta nesta jornada da vida com o brilho nos olhos que é uma alegria para nossa família.
Bjos.
GU.

Unknown disse...

ô tia... tô aqui toda chororô agora! Que delícia esse texto!!!Esses dias fui visitar a Bisa e ela, como sempre, toda brincalhona comigo, tava lindaaaa... Pensei: quero envelhecer assim!De repente, não aguentei e a agarrei e enchi de beijo aquele rostinho... uma delícia!
brigada!
beijo,
Ju

Leonora disse...

Puxa! Lindo texto, Márcia!
Coisa de gente com grande sensibilidade!

Beijão!

Anônimo disse...

É isso que a vida quer de nós, aproveitarmos daquilo que nos é dado de graça. Temos tudo que precisamos. Nossa intuição, nossos sentidos, nossas vivências que devem nos levar aos caminhos de uma vida "regada" ao simples. A dignidade de uma pessoa é a sua maior fortaleza e deve prevalecer firme até o fim de nossas vidas.
Amei o texto! Arlete Bistocchi