quinta-feira, 19 de março de 2009

NEM TUDO É O QUE PARECE

Nos últimos dias, tenho recebido mensagens de pessoas que nos convocam a pensar sobre o caso da menina brasileira de 9 anos que foi violentada pelo pai e engravidou. Em Lisboa aconteceu ontem o julgamento de uma pessoa envolvida em pedofilia. Nessas horas, a não ser pelas vozes de alguns poucos iluminados, como Jean Yves Leloup, que já evoluíram no sentimento de compaixão pelo ser humano, fica praticamente impossível não julgarmos ou tomarmos partido desta ou daquela pessoa envolvida. A indignação fala mais alto quando um adulto violenta uma criança, seja em que circunstância for.

Não julgar, nestes casos, é um desafio que muitos de nós nos abstemos de fazer. Mas eu queria refletir sobre o não julgamento em outras situações bem mais comuns e que acabam por contaminar a nossa relação com as pessoas, principalmente as mais próximas e queridas.

Quantas e quantas vezes, no nosso dia a dia, olhamos para os atos dos outros a partir dos nossos valores? E julgamos e condenamos tudo que não se encaixa ali? Quantas vezes censuramos o outro sem lhe dar chance de se explicar? E quantas vezes não percebemos o que o outro nos quer dizer, envolvidos que estamos com o nosso próprio umbigo?

Carl Rogers, que a cada dia admiro mais, dizia sempre, na relação terapêutica, uma palavrinha muito importante: parece-me. Como queria compreender empaticamente e confiava no potencial do outro para encontrar as respostas, Rogers sempre se certificava se sua compreensão estava correta, dizendo:

parece-me que você está preocupado com...
parece-me que você está em dúvida com...
parece-me que você está irritado com...
é isso mesmo? Eu percebi corretamente?

Não se trata apenas de dizer esta palavrinha, não se trata de uma técnica a ser aprendida, trata-se sobretudo de uma atitude: a disposição interna para se colocar no lugar do outro e compreendê-lo a partir do seu referencial. Parece-me - parece a mim - pode não ser isto, então se não for exatamente isso, por favor me corrija.

E essa atitude, transposta para as nossas relações com familiares, amigos, colegas de trabalho, pode realmente evitar grandes mágoas e desentendimentos. Uma cena muito comum, por exemplo, é alguém ter um hábito que incomoda e irrita outra pessoa e esta, incapaz de se manifestar, amua, ao mesmo tempo em que pensa: mas quanta falta de consideração, será que esse fulano não desconfia que está me incomodando? Está criado o desconforto. O que praticou o ato, mas nem de longe desconfia que incomoda, pensa: pronto, já temos mau humor de novo.

Situações semelhantes podem acontecer, por exemplo, quando você pensa que seu colega é “espaçoso” e não faz o que lhe compete, sobrecarregando os demais. Ou aquela pessoa invade sua vida com palpites e sugestões o tempo todo. Ou aquela outra pessoa é uma fofoqueira, sabe tudo da vida de todos. E quando, no casal, um é muito organizado e o outro não?

E há também situações mais graves, que podem vir a comprometer a saúde física e mental das pessoas envolvidas, como negligência, corrupção, violência doméstica, chantagem emocional, coerção física, sexual ou moral, toxicodependência, dentre outras. Nesses casos, há grande dose de sofrimento para todas as pessoas envolvidas, e compreender o outro torna-se realmente um desafio.

Enfim, temos pressões de toda sorte, somos humanos, cometemos erros, falamos quando deveríamos nos calar, calamos quando deveríamos dizer. E, se somos falíveis, podemos e devemos dar ao outro a chance de errar também.

Compreender, no entanto, não significa concordar sempre com o outro. Também não significa ser conivente com algo que é destrutivo, seja para a pessoa envolvida, seja para conosco, seja para a relação afetiva. Muitas vezes, podemos e devemos discordar, manifestar nosso ponto de vista, mas buscando esclarecer, buscando a compreensão em outro nível, o da construção de relações sadias, duradouras e evolutivas.

Quando insisto no não julgamento, quero refletir sobre o muro que se constrói quando vamos conversar com rigidez, com ideias preconcebidas, “rotulando” o outro, sem lhe dar margem para que se expresse, condenando o diferente só porque não se encaixa na nossa visão de mundo. Quando ouvimos o outro a partir do nosso referencial, não estamos abertos à empatia, e se não estamos abertos à empatia, não temos como compreender o que ele diz com isenção. Por isso, mais vale o benefício da dúvida e a abertura de espírito, sempre atentos para o fato de que nem tudo é o que parece ser...



quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Da necessária individualidade para o individualismo doentio:a sociedade dos buracos negros - homens

Amigos,

Este texto foi escrito por Alexandre Britto, parceiro no ateliê, para nossa reflexão e diálogo. Será interessante que poste seu comentário no blog, para que outras pessoas possam compartilhar e interagir.

Um abraço,

Márcia Píramo

Sem sombra de dúvida, a individualidade e a liberdade formam hoje o binômio no qual uma grande maioria de seres baseia sua existência. Quebrar estas regras é considerado ato absurdo, pois não há nada mais agressivo do que desrespeitar o espaço sagrado ou a individualidade de outrem.


Também não há dúvida que esta individualidade seja necessária e, quase sempre, terapêutica. Ter a possibilidade de estar em contato com o próprio ser ou sua própria existência é, também, ter a possibilidade de se refazer, de se reconstituir, de se preparar para qualquer situação ou ação, ou mesmo de “dar um tempo”! O exercício da individualidade pode ser considerado uma vitória histórica e um avanço no entendimento do homem sobre a sua própria existência; avanço que foi conquistado, através do tempo, com muita luta.


Porém, a noção de individualidade em momento algum pode estar separada de outras noções tão importantes como ela própria. Em nossa existência, não somos somente seres de individualidade, mas também, seres de coletividade. Assim, lhes pergunto: o que houve com a porção do ser que diz respeito às responsabilidades sociais ou à coletividade; à divulgação de bons valores; ao posicionamento político; ao exercício benéfico do relacionar-se? O que houve com este homem que precisa se comunicar, dividir e aceitar suas impossibilidades? Este ser, lhes digo, está massacrado e enterrado por essa nova versão – a individualidade extrema.


Assim nos deparamos com uma situação um tanto quanto perigosa: abrimos mão de nossa noção de coletividade para viver ao extremo a noção de individualidade. O problema é que ao experenciar no extremo a individualidade, muitas vezes não determinamos os limites para a mesma e, a cada momento, nos atolamos em um “querer mais e mais”. Vamos nos constituindo como seres apenas ampliando o campo das sensações, prazeres cada vez mais vorazes e, na abrangência de nossa própria individualidade, desconsiderando e passando por cima de outras individualidades; restringindo o sentido da vida à satisfação pessoal por qualquer meio. E é neste momento que transformamos nossa sagrada individualidade em individualismo doentio.


Podemos associar a esta vivência do individualismo doentio, outro nome, como o egocentrismo, pois estando somente inscritos no círculo de nosso individualismo, não nos damos conta da possibilidade de existência de outros seres e de seus sentidos para a vida. Não há qualquer movimento empático real para, respeitando a existência e sentido alheio, colocarmo-nos no espaço do outro. Portamos-nos, portanto, como os misteriosos buracos negros, que, em analogia, sugam e deformam o sentido de qualquer coisa ao seu alcance, para o centro de sua existência.


E assim assistimos à constituição e formação de gerações de buracos negros-homens que desconhecem limites e “devoram” os diversos sentidos em seu alcance. Gerações de indivíduos que seguem sua marcha imperialista, dogmatizando a existência, resistindo à própria mudança ou resistindo à mudança do outro; impondo sua “gravidade” para tudo e todos ao seu redor.


São seres que se associam, enquanto sociedade, à criação e consumo do sistema de entretenimento hedonista de prazeres imediatos. Não há nada melhor para dar sentido à existência dos buracos negros-homens, pois o tempo todo, estes se ocupam com a satisfação de prazeres efêmeros e, sempre, necessariamente, mais intensos. O meta-sentido é: consuma, ou, na qualidade de buracos negros-homens, “devorem”! E assim, segue a marcha da produção de produtos-pessoas – negociáveis e descartáveis e legitima-se o seu maior sentido: a coisificação do homem.


Devemos, urgentemente, fazer o movimento inverso de individualismo doentio para a noção correta de individualidade, sem abandonarmos a noção de coletividade. O equilíbrio entre estas duas noções é fundamental para uma vida em sociedade diferenciada do que vivemos há séculos. Retomar a noção de coletividade é restabelecer os espaços para convivência e o exercício de relacionar-se com o outro. É apropriar-se do sentido de sua própria existência ao tomar conhecimento do também legítimo espaço e sentido de existência de outro. Não há como se conhecer por si só, precisamos do outro para o contato conosco, pois é este outro que dá sentido às nossas vidas e ações, legitimando-as, impondo-nos desafios, conflitos, limites, afetos, etc. Em nossos movimentos para nos isolarmos e vivenciarmos apenas nossos prazeres, não nos afastamos somente de outras pessoas, mas nos afastamos da idéia de sermos pessoas humanas, essencialmente relacionais.


Precisamos de um novo paradigma e a partir dele, criar novas possibilidades e métodos para alcançarmos nossas maiores habilidades: as capacidades de relacionar e cooperar! Sim, estes são nossos verdadeiros desafios nestes novos tempos de dificuldades Eco-humanas que se anunciam.
Vencerá a sociedade dos buracos negros-homens?